IVAN ILITCH: A RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE NA OBRA DE TOLSTOI
Por Marina Fernandes, Montgomery Barroso, Neander Neves e Matheus Inácio
O livro “A morte de Ivan Ilitch”, de Leon Tolstoi, conta o drama de uma pessoa com uma doença incurável (ou que os médicos não conseguiram curar) e causadora de muito sofrimento, tanto físico quanto emocional. Essa é uma leitura de fato bastante atual por compreender aspectos tanto de saúde e doença como o comportamento e influência do médico ao lidar com o enfermo.
Ivan Ilitch era um homem jovem, que valorizava uma vida agradável e baseada nas aparências e teve de enfrentar um processo de adoecimento e rompimento com seus hábitos e rotinas, o que foi marcado por emoções como solidão, raiva, culpa, autopiedade, dentre outros.
Quando do surgimento dos sintomas, uma dor repentina e aguda acompanhada de amargura na boca, consultou médicos renomados e especialistas importantes. Os médicos, porém, não chegaram a um consenso quanto ao diagnóstico e tampouco conseguiram um tratamento eficaz ou que garantisse maior conforto ao paciente. Na primeira consulta, teve a sensação de que o médico passava a mensagem de “deixe tudo conosco e nós resolveremos as coisas”, o que, de certa forma, correspondia a suas expectativas quanto à procura por esse profissional. No entanto, esse mesmo médico mantinha-se mais concentrado na importância da escolha entre as hipóteses diagnósticas e o tratamento a ser adotado, enquanto, para Ivan Ilitch, muito mais importava saber se seu caso era ou não grave. Sentiu que o médico ignorou seu questionamento acerca da gravidade de seus sintomas e que isso significava que as coisas não estavam bem. Essa conclusão foi dolorosa, principalmente porque foi associada a impressão de que, assim como para o médico isso não significava muito, as pessoas com quem convivia achariam seu estado de saúde algo relevante ou mesmo frívolo, enquanto, para ele, era simplesmente algo terrível.
A conduta médica foi recomendar dieta especial e uso de medicamentos. Ivan Ilitch sentia que era sua obrigação cumprir a orientação estabelecida, pelo menos para ter o conforto de saber que estava fazendo o seu melhor. Porém, a abordagem terapêutica adotada não se mostrou eficaz e Ivan Ilitch teve a nitidez de que o médico não o havia orientado das coisas conforme elas realmente se passariam.
Com a progressão da doença, consultou um médico amigo de um amigo seu, que fez uma recapitulação detalhada da sua história e tratou-o com um pouco mais de dignidade. O contato com esse profissional permitiu a Ivan Ilitch ter, pela primeira vez em muito tempo, esperanças de que encontraria a cura. Porém, concomitantemente ao sentimento de que tudo poderia dar certo, veio-lhe a realização de que era tarde demais para qualquer solução, que o próximo passo seria o encontro com a morte. Sendo assim, ele, enquanto paciente terminal, ficou desamparado de orientações sobre o processo de morrer, mais ainda sobre o sua experimentação pessoal do morrer. Com isso, à doença somou-se essa angústia acerca do que representa a morte, seu significado, o que virá depois dela. Ivan Ilitch senti pavor e medo, não entendia o por quê de morrer, muito menos aquela morte dolorosa, sofrida e demorada. Projetou sua frustração na forma de raiva sobre todos aqueles que não entendiam ou estavam insensíveis à sua partida, em especial sua esposa, que adotara um comportamento incompatível com os mais de vinte anos de casados – ela resolvera, repentinamente, ser gentil e doce, parecendo piedosa, aumentando nele a sensação de ser um peso aos vivos e saudáveis.
Analisando o texto de Leon Tolstoi é possível traçar uma característica dos médicos da época e que ainda persiste em muitos profissionais – olhar primeiro a doença e tratar tal enfermidade, não o doente. Essa é uma postura geralmente associada ao conceito de que sofrimento é aquilo que se quantifica no físico, e somente isso. Esse tipo de comportamento é uma evidência da despersonalização do atendimento, desumanização da prática médica e desrespeito ao paciente enquanto ser esférico e complexo. Há um episódio no texto que é bastante peculiar: o paciente sentia muita dor e solicitou a visita de um médico, o qual lhe disse que os doentes são todos iguais, um tanto quanto dramáticos, e que devem ser perdoados porque adotam manias e posturas estranhas, anormais. Esse médico criou uma maneira inflexível de ver o doente, que é aquela de simplesmente olhar para ele, mas sem de fato enxergá-lo. Muitos profissionais de hoje adotam postura idêntica ou, ao menos, semelhante, evidenciando a fragilidade da formação humanizada e voltada a uma boa relação médico-paciente.
Em especial nos dias de hoje, quando vivemos um cotidiano acelerado, com fluxo de informações na velocidade da luz e um ritmo de trabalho maquinal, há uma tendência ao pragmatismo nos consultórios médicos e, com isso, o paciente cada vez mais é dividido entre ser humano e corpo humano. Isso significa dizer que deixa-se, com facilidade, de olhar o paciente como um complexo de emoções que influem nas patologias e sofre influência delas.
Os médicos de Ivan Ilitch, de maneira geral, falharam nos três aspectos importantes na relação médico-paciente. Primeiro - como já foi dito - ignoraram que uma boa relação médico-paciente tem participação na abordagem terapêutica e concentraram-se na doença, não no paciente. Depois, não tentaram compreender os impactos do processo de adoecimento, ou mesmo da falta de saúde, na rotina de Ivan Ilitch. Finalmente, não orientaram o paciente e sua família em relação ao processo pelo qual o paciente estava passando e aquilo que ele provavelmente iria passar, agindo de forma negligente e, dessa forma, permitindo frustrações e afrouxamento na adesão ao tratamento proposto.
Obviamente, o estado emocional de Ivan Ilitch foi dependente de outros fatores que não os médicos – ele tinha uma relação familiar fragilizada, amizades e vínculos sociais superficiais, baseados nas aparências, e ele próprio tornou-se alguém pouco amável e, até mesmo, agressivo. O sentimento de culpa era comungado por vários membros da família, e o próprio paciente culpava, vez ou outra, pessoas diferentes – médicos, familiares e a si mesmo. O bom médico, principalmente aqueles considerados os “médicos da família”, devem perceber a fragilidade das relações humanas e evitar que o quadro clínico agrave ou que seja agravado por elas. Este não é um processo ou tarefa fácil, exige trabalho e requer habilidade do profissional para lidar com pessoas, mas não é uma tarefa impossível.
Ivan Ilitch passou sozinho por várias fases do processo de doença terminal: o desespero diante da fatalidade, a tentativa de compreender o sofrimento e a morte e a reflexão sobre sua vida. Em tudo isso ele esteve sozinho, mas poderia ter a palavra amiga ou, no mínimo, a escuta paciente do médico e da família. Nota-se que a benção (extrema unção) levada pelo padre, apesar da recusa inicial, permitiu ao paciente um temporário alívio. Entretanto, esse se desfez quando a desconfiança voltou a lhe tomar conta. Essa passagem do texto remete a delicadeza com a qual deve ser tratado o paciente terminal, sendo o médico ferramenta do processo de aceitação. Quando o bom médico, dentro dos pilares éticos, consegue confortar o paciente terminal e aliviar sua ansiedade e temor, o ato de morrer fica mais leve, inclusive para aqueles que assistem a morte do ente querido.
Por fim, Ivan Ilitch, como qualquer outro paciente, esperava de seus médicos soluções. Na impossibilidade de encontra-las ou obtê-las, procurava ao menos por respostas. O médico sempre pode fazer algo pelo paciente, mesmo que não seja dar-lhe alívio físico ou a cura de uma patologia, mas o respeito e a sensação de que o doente é um ser humano único e completo, sendo a sua história e a sua vida, como um todo, muito importantes. Para o paciente, o seu sofrimento é o maior sofrimento, pois é aquilo que ele experimenta naquele momento. É aquilo que o assusta, incomoda, impede que tenha sua rotina preservada, por mais que ele próprio saiba da baixa gravidade de sua condição. O paciente quer se sentir seguro, sentir que não é somente mais um doente, ele precisa sentir que o médico percebe isso e quer realmente ajuda-lo. Ivan Ilitch era um paciente assim e quis, até sua morte, que todos, inclusive os médicos que gozavam de agradável saúde, entendessem seu sofrimento e sua morte como ele experimentava, algo único e angustiante.